A propósito da "linhagem que começa com as maquinarias ópticas de Brunelleschi" de dispositivos "capazes de constrangerem os desempenhos da mão e adequarem-se ao exercício da visão corrigida"('Figuras do Espanto' p. 70):
"To demonstrate the effect of drawing in perspective, Filippo Brunelleschi painted the Baptistery of San Giovanni from about six feet inside the center door of Santa Maria del Fiore. The painting included everything that could be seen from his positioned location. Instead of painting the sky, he affixed a plate of polished silver. He carved a peephole in the painted panel at the perspective vanishing point.
Standing at the same location where he painted the view, he demonstrated the accuracy of perspective drawing by holding the painted panel facing away, with the panel held up to his eye to peer through the hole. With his other hand he held a mirror at arms length in front of and facing the painting so that he was looking directly into the mirror at the reflection of the painting.
The view through the hole into the mirror revealed the painting, drawn in perfect perspective, in the place where the subject of the painting would be viewed. The polished silver plate reflected the actual sky complete with drifting clouds. The view was so realistic that the viewer could not tell the difference between the painted scene and the actual image of the building’s shape and proportion."
info.aia.org
31.8.12
Kodak
4 de Setembro de 1888; Gerorge Eastman obtem a patente do seu invento
- a pequena e revolucionária câmara fotográfica "Kodak"
O set da Kodak (1888)
30.8.12
Não fosse o meu talento para me meter dentro da minha cabeça e não conseguiria sobreviver aqui.
Raistafôda... ... ... raistaparta...
28.8.12
39.
De repente, como se um destino médico me houvesse operado de uma cegueira antiga com grandes resultados súbitos, ergo a cabeça, da minha vida anónima, para o conhecimento claro de como existo. E vejo que tudo quanto tenho feito, tudo quanto tenho pensado, tudo quanto tenho sido, é uma espécie de engano e de loucura. Maravilho-me do que consegui não ver. Estranho quanto fui e que vejo que afinal não sou.
Olho, como numa extensão ao sol que rompe nuvens, a minha vida passada; e noto, com um pasmo metafísico, como todos os meus gestos mais certos, as minhas ideias mais claras, e os meus propósitos mais lógicos, não foram, afinal, mais que bebedeira nata, loucura natural, grande desconhecimento. Nem sequer representei.
Representaram-me. Fui, não o actor, mas os gestos dele.
Tudo quanto tenho feito, pensado, sido, é uma soma de subordinações, ou a um ente falso que julguei meu, por que agi dele para fora, ou de um peso de circunstâncias que supus ser o ar que respirava. Sou, neste momento de ver, um solitário súbito, que se reconhece desterrado onde se encontrou sempre cidadão. No mais íntimo do que pensei não fui eu.
Vem-me, então, um terror sarcástico da vida, um desalento que passa os limites da minha individualidade consciente. Sei que fui erro e descaminho, que nunca vivi, que existi somente porque enchi tempo com consciência e pensamento. E a minha sensação de mim é a de quem acorda depois de um sono cheio de sonhos reais, ou a de quem é liberto, por um terramoto, da luz pouca do cárcere a que se habituara.
Pesa-me, realmente me pesa, como uma condenação a conhecer, esta noção repentina da minha individualidade verdadeira, dessa que andou sempre viajando sonolentamente entre o que sente e o que vê.
É tão difícil descrever o que se sente quando se sente que realmente se existe, e que a alma é uma entidade real, que não sei quais são as palavras humanas com que possa defini-lo. Não sei se estou com febre, como sinto, se deixei de ter a febre de ser dormidor da vida. Sim, repito, sou como um viajante que de repente se encontre numa vila estranha sem saber como ali chegou; e ocorrem-me esses casos dos que perdem a memória, e são outros durante muito tempo. Fui outro durante muito tempo - desde a nascença e a consciência -, e acordo agora no meio da ponte, debruçado sobre o rio, e sabendo que existo mais firmemente do que fui até aqui. Mas a cidade é-me incógnita, as ruas novas, e o mal sem cura. Espero, pois, debruçado sobre a ponte, que me passe a verdade, e eu me restabeleça nulo e fictício, inteligente e natural.
Foi um momento, e já passou. Já vejo os móveis que me cercam, os desenhos do papel velho das paredes, o sol pelas vidraças poeirentas. Vi a verdade um momento. Fui um momento, com consciência, o que os grandes homens são com a vida. Recordo-lhes os actos e as palavras, e não sei se não foram também tentados vencedoramente pelo Demónio da Realidade. Não saber de si é viver. Saber mal de si é pensar. Saber de si, de repente, como neste momento lustral, é ter subitamente a noção da mónada íntima, da palavra mágica da alma. Mas essa luz súbita cresta tudo, consume tudo. Deixa-nos nus até de nós.
Foi só um momento, e vi-me. Depois já não sei sequer dizer o que fui. E, por fim, tenho sono, porque, não sei porquê, acho que o sentido é dormir.
Bernardo Soares em O Livro do Desassossego
27.8.12
regresso ...e continuo a navegar
Não conhece a arte de navegar
quem nunca navegou no ventre de uma mulher,
remou nela, naufragou
e sobreviveu numa das suas praias.
Cristina Peri Rossi
quem nunca navegou no ventre de uma mulher,
remou nela, naufragou
e sobreviveu numa das suas praias.
Cristina Peri Rossi
" A Pedra Suspensa "
Gérard Castello-Lopes 1987
“consegui fotografar a pedra e o contrário da pedra, isto é, o peso e a ausência de peso.
A pedra foi uma espécie de oferta de Deus.”
6.8.12
o último poema.
É talvez o último dia da minha vida.
Saudei o Sol, levantando a mão direita,
Mas não o saudei, dizendo-lhe adeus,
Fiz sinal de gostar de o ver antes: mais nada.
Alberto Caeiro
(dictated on the day of his death)
4.8.12
... cá dentro inquietação, inquietação
Inquietação
A contas com o bem que tu me fazes
A contas com o mal por que passei
Com tantas guerras que travei
Já não sei fazer as pazes
São flores aos milhões entre ruínas
Meu peito feito campo de batalha
Cada alvorada que me ensinas
Oiro em pó que o vento espalha
Cá dentro inquietação, inquietação
É só inquietação, inquietação
Porquê, não sei
Porquê, não sei
Porquê, não sei ainda
Há sempre qualquer coisa que está pra acontecer
Qualquer coisa que eu devia perceber
Porquê, não sei
Porquê, não sei
Porquê, não sei ainda
Ensinas-me fazer tantas perguntas
Na volta das respostas que eu trazia
Quantas promessas eu faria
Se as cumprisse todas juntas
Não largues esta mão no torvelinho
Pois falta sempre pouco para chegar
Eu não meti o barco ao mar
Pra ficar pelo caminho
Cá dentro inqueitação, inquietação
É só inquietação, inquietação
Porquê, não sei
Porquê, não sei
Porquê, não sei ainda
Há sempre qualquer coisa que está pra acontecer
Qualquer coisa que eu devia perceber
Porquê, não sei
Porquê, não sei
Porquê, não sei ainda
Cá dentro inqueitação, inquietação
É só inquietação, inquietação
Porquê, não sei
Mas sei
É que não sei ainda
Há sempre qualquer coisa que eu tenho que fazer
Qualquer coisa que eu devia resolver
Porquê, não sei
Mas sei
Que essa coisa é que é linda
José Mário Branco
2.8.12
La casa de Asterión
E a rainha deu à luz um filho que se chamou Astérion.
Sei que me acusam de soberba, e talvez de misantropia, talvez de loucura. Tais acusações (que castigarei no devido tempo) são irrisórias. É verdade que não saio de casa, mas também é verdade que as suas portas (cujo número é infinito*) estão abertas dia e noite aos homens e também aos animais. Que entre quem quiser. Não encontrará aqui pompas femininas, nem o bizarro aparato dos palácios, mas sim a quietude e a solidão. Por isso mesmo, encontrará uma casa como não há outra na face da terra. (Mentem os que declaram existir uma parecida no Egipto.) Até os meus detractores admitem que não há um só móvel na casa. Outra afirmação ridícula é que eu, Astérion, seja um prisioneiro. Valerá a pena repetir que não há uma só porta fechada, acrescentar que não existe uma só fechadura? Além disso, num entardecer, pisei a rua; se voltei antes da noite, foi pelo temor que me infundiram os rostos da plebe, rostos descoloridos e iguais, como a mão aberta. Já se tinha posto o sol, mas o desvalido pranto de um menino e as rudes preces do povo disseram que me haviam reconhecido. O povo orava, fugia, prosternava-se; alguns encarapitavam-se no estilóbato do Templo das Tochas, outros juntavam pedras. Um deles, creio, ocultou-se no mar. Não em vão que uma rainha foi minha mãe; não posso confundir-me com o vulgo, ainda que o queira a minha modéstia.
O facto é que sou único. Não me interessa o que um homem possa transmitir a outros homens; como o filósofo, penso que nada é comunicável pela arte da escrita. As enfadonhas e triviais minúcias não encontram espaço no meu espírito, que está capacitado para o grande; jamais retive a diferença entre uma letra e outra. Certa impaciência generosa não consentiu que eu aprendesse a ler. Às vezes deploro-o, porque as noites e os dias são longos.
Claro que não me faltam distracções. Tal como o carneiro que vai investir, corro pelas galerias de pedra até cair no chão, atordoado. Oculto-me à sombra de uma cisterna ou na curva de um corredor e divirto-me como se me procurassem. Há terraços donde me deixo cair, até me ensanguentar. A qualquer hora posso fingir que estou a dormir, com os olhos fechados e a respiração contida. (Às vezes durmo realmente, às vezes já é outra a cor do dia quando abro os olhos.) Mas, de todas as brincadeiras, a que prefiro é a do outro Astérion. Finjo que ele vem visitar-me e que eu lhe mostro a casa. Com grandes reverências, digo-lhe: "Agora voltamos à encruzilhada anterior" ou "Agora desembocamos noutro pátio" ou "Bem dizia eu que te agradaria o pequeno canal" ou "Agora verás uma cisterna que se encheu de areia" ou " já vais ver como o cave se bifurca". As vezes engano-me e rimo-nos os dois, amavelmente.
Não só imaginei esses jogos; tenho também meditado sobre a casa. Todas as partes da casa existem muitas vezes, qualquer lugar é outro lugar. Não há uma cisterna, um pátio, um bebedouro, um portal; são catorze [são infinitos] os portais, bebedouros, pátios, cisternas. A casa é do tamanho do mundo; ou melhor, é o mundo. Todavia, à força de andar por pátios com uma cisterna e com poeirentas galerias de pedra cinzenta, alcancei a rua e vi o templo das Tochas e o mar. Não me apercebi disso até que uma visão nocturna me revelou que também são catorze [são infinitos] os mares e os templos. Tudo existe muitas vezes, catorze vezes, mas duas coisas há no mundo que parecem existir uma única vez: em cima, o intrincado sol; em baixo, Astérion. Talvez eu tenha criado as estrelas e o sol e a enorme casa, mas já não me lembro.
Cada nove anos, entram na casa nove homens para que eu os liberte de todo o mal. Ouço os seus passos ou sua voz no fundo das galerias de pedra e corro alegremente para recebê-los. A cerimónia dura poucos minutos. Um após outro, caem sem que eu ensanguente as mãos. Onde caíram, ficam, e os cadáveres ajudam a distinguir uma galeria das outras. Ignoro quem sejam, mas sei que um deles, na hora da morte, profetizou que um dia chegaria o meu redentor. Desde então a solidão não me magoa, porque sei que o meu redentor vive e por fim se levantará do pó. Se o meu ouvido alcançassem todos os rumores do mundo, eu perceberia os seus passos. Oxalá me leve para um lugar com menos galerias e menos portas. Como será o meu redentor? – pergunto-me. Será um touro ou um homem? Será talvez um touro com cara de homem? Ou será como eu?
O sol da manhã brilhou na espada de bronze. Já não havia qualquer vestígio de sangue.
– Acreditarás, Ariadna? – disse Teseu. – O minotauro mal se defendeu.
A Marte Mosquera Eastman.
* O original diz catorze, mas sobram motivos para inferir que, na boca de Asterión, esse adjectivo numeral vale por infinitos.
1.8.12
de profundis amamus
Ontem
às onze
fumaste
um cigarro
encontrei-te
sentado
ficámos para perder
todos os teus eléctricos
os meus
estavam perdidos
por natureza própria
Andámos
dez quilómetros
a pé
ninguém nos viu passar
excepto
claro
os porteiros
é da natureza das coisas
ser-se visto
pelos porteiros
Olha
como só tu sabes olhar
a rua os costumes
O Público
o vinco das tuas calças
está cheio de frio
e há quatro mil pessoas interessadas
nisso
Não faz mal abracem-me
os teus olhos
de extremo a extremo azuis
vai ser assim durante muito tempo
decorrerão muitos séculos antes de nós
mas não te importes
não te importes
muito
nós só temos a ver
com o presente
perfeito
corsários de olhos de gato intransponível
maravilhados maravilhosos únicos
nem pretérito nem futuro tem
o estranho verbo nosso
às onze
fumaste
um cigarro
encontrei-te
sentado
ficámos para perder
todos os teus eléctricos
os meus
estavam perdidos
por natureza própria
Andámos
dez quilómetros
a pé
ninguém nos viu passar
excepto
claro
os porteiros
é da natureza das coisas
ser-se visto
pelos porteiros
Olha
como só tu sabes olhar
a rua os costumes
O Público
o vinco das tuas calças
está cheio de frio
e há quatro mil pessoas interessadas
nisso
Não faz mal abracem-me
os teus olhos
de extremo a extremo azuis
vai ser assim durante muito tempo
decorrerão muitos séculos antes de nós
mas não te importes
não te importes
muito
nós só temos a ver
com o presente
perfeito
corsários de olhos de gato intransponível
maravilhados maravilhosos únicos
nem pretérito nem futuro tem
o estranho verbo nosso
mário cesariny de vasconcelos – “de profundis amamus”
Escravos e quase assalariados....
Lewis Hine
Enroladores de charutos na Tabaqueira Englahardt & Co,
Tampa, Florida, Janeiro de 1909
Photograph from the records of the National Child Labor Committee (U.S.)
Library of Congress
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