2.8.12

La casa de Asterión



E a rainha deu à luz um filho que se chamou Astérion.


Sei que me acusam de soberba, e talvez de misantropia, talvez de loucura. Tais acusações (que castigarei no devido tempo) são irrisórias. É verdade que não saio de casa, mas também é verdade que as suas portas (cujo número é infinito*) estão abertas dia e noite aos homens e também aos animais. Que entre quem quiser. Não encontrará aqui pompas femininas, nem o bizarro aparato dos palácios, mas sim a quietude e a solidão. Por isso mesmo, encontrará uma casa como não há outra na face da terra. (Mentem os que declaram existir uma parecida no Egipto.) Até os meus detractores admitem que não há um só móvel na casa. Outra afirmação ridícula é que eu, Astérion, seja um prisioneiro. Valerá a pena repetir que não há uma só porta fechada, acrescentar que não existe uma só fechadura? Além disso, num entardecer, pisei a rua; se voltei antes da noite, foi pelo temor que me infundiram os rostos da plebe, rostos descoloridos e iguais, como a mão aberta. Já se tinha posto o sol, mas o desvalido pranto de um menino e as rudes preces do povo disseram que me haviam reconhecido. O povo orava, fugia, prosternava-se; alguns encarapitavam-se no estilóbato do Templo das Tochas, outros juntavam pedras. Um deles, creio, ocultou-se no mar. Não em vão que uma rainha foi minha mãe; não posso confundir-me com o vulgo, ainda que o queira a minha modéstia.

O facto é que sou único. Não me interessa o que um homem possa transmitir a outros homens; como o filósofo, penso que nada é comunicável pela arte da escrita. As enfadonhas e triviais minúcias não encontram espaço no meu espírito, que está capacitado para o grande; jamais retive a diferença entre uma letra e outra. Certa impaciência generosa não consentiu que eu aprendesse a ler. Às vezes deploro-o, porque as noites e os dias são longos.

Claro que não me faltam distracções. Tal como o carneiro que vai investir, corro pelas galerias de pedra até cair no chão, atordoado. Oculto-me à sombra de uma cisterna ou na curva de um corredor e divirto-me como se me procurassem. Há terraços donde me deixo cair, até me ensanguentar. A qualquer hora posso fingir que estou a dormir, com os olhos fechados e a respiração contida. (Às vezes durmo realmente, às vezes já é outra a cor do dia quando abro os olhos.) Mas, de todas as brincadeiras, a que prefiro é a do outro Astérion. Finjo que ele vem visitar-me e que eu lhe mostro a casa. Com grandes reverências, digo-lhe: "Agora voltamos à encruzilhada anterior" ou "Agora desembocamos noutro pátio" ou "Bem dizia eu que te agradaria o pequeno canal" ou "Agora verás uma cisterna que se encheu de areia" ou " já vais ver como o cave se bifurca". As vezes engano-me e rimo-nos os dois, amavelmente.

Não só imaginei esses jogos; tenho também meditado sobre a casa. Todas as partes da casa existem muitas vezes, qualquer lugar é outro lugar. Não há uma cisterna, um pátio, um bebedouro, um portal; são catorze [são infinitos] os portais, bebedouros, pátios, cisternas. A casa é do tamanho do mundo; ou melhor, é o mundo. Todavia, à força de andar por pátios com uma cisterna e com poeirentas galerias de pedra cinzenta, alcancei a rua e vi o templo das Tochas e o mar. Não me apercebi disso até que uma visão nocturna me revelou que também são catorze [são infinitos] os mares e os templos. Tudo existe muitas vezes, catorze vezes, mas duas coisas há no mundo que parecem existir uma única vez: em cima, o intrincado sol; em baixo, Astérion. Talvez eu tenha criado as estrelas e o sol e a enorme casa, mas já não me lembro.

Cada nove anos, entram na casa nove homens para que eu os liberte de todo o mal. Ouço os seus passos ou sua voz no fundo das galerias de pedra e corro alegremente para recebê-los. A cerimónia dura poucos minutos. Um após outro, caem sem que eu ensanguente as mãos. Onde caíram, ficam, e os cadáveres ajudam a distinguir uma galeria das outras. Ignoro quem sejam, mas sei que um deles, na hora da morte, profetizou que um dia chegaria o meu redentor. Desde então a solidão não me magoa, porque sei que o meu redentor vive e por fim se levantará do pó. Se o meu ouvido alcançassem todos os rumores do mundo, eu perceberia os seus passos. Oxalá me leve para um lugar com menos galerias e menos portas. Como será o meu redentor? – pergunto-me. Será um touro ou um homem? Será talvez um touro com cara de homem? Ou será como eu?
O sol da manhã brilhou na espada de bronze. Já não havia qualquer vestígio de sangue.
– Acreditarás, Ariadna? – disse Teseu. – O minotauro mal se defendeu.


A Marte Mosquera Eastman.

Jorge Luis Borges - O Aleph 1949


* O original diz catorze, mas sobram motivos para inferir que, na boca de Asterión, esse adjectivo numeral vale por infinitos.


 

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